Livros brancos são relatórios oficiais que têm a finalidade de apresentar assuntos complexos ao grande público, de uma forma acessível. Mais do que simplesmente relatar aquele assunto, um livro branco tem a finalidade de transmitir a filosofia que orienta o direcionamento daquela política pública. Quando trata de assuntos de Defesa, eles são uma das ferramentas que um Estado utiliza para comunicar seus objetivos políticos e estratégicos, de modo a delinear com clareza os seus conceitos de Segurança Nacional e os limites de sua atuação, tanto para os próprios cidadãos, quanto para a comunidade internacional.
Nesse sentido, foi com a finalidade de deixar claríssima a sua postura em relação a Taiwan que a República Popular da China acaba de divulgar seu livro branco intitulado “The Taiwan Question and China’s Reunification in the New Era”. Trata-se do terceiro documento do tipo. Os anteriores foram publicados em 1993 e 2000. A nova edição é divulgada em um momento especialmente sensível, após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória do governo norte-americano, deputada Nancy Pelosi, à ilha, fato que causou profunda contrariedade no governo chinês e elevou as tensões no Estreito de Taiwan ao nível mais alto desde a década de 1990.
O livro branco é constituído de um preâmbulo, cinco capítulos e uma conclusão. A seguir, farei um resumo dos seus principais aspectos, certo de que o entendimento da compreensão oficial dos chineses acerca da questão taiwanesa é fundamental para todos aqueles que pretendem entender a China atual e a dinâmica de segurança naquela importante região do planeta.
Logo na primeira frase, o documento afirma que resolver a questão taiwanesa e completar a reunificação da China é aspiração de todos os “filhos e filhas da nação chinesa”, além de ser uma missão histórica do Partido Comunista chinês. O uso da expressão “filhos e filhas da nação” não é mero recurso estilístico. As palavras foram escolhidas para remeter ao sentimento patriótico: trata-se de uma aspiração da “mãe pátria”, o que eleva a questão ao nível máximo da nacionalidade, acima de quaisquer divergências políticas.
O primeiro capítulo traz uma longa exposição histórica, para concluir que o território taiwanês pertence à China desde a antiguidade e que há uma só China, fato que seria comprovado pela história e pelas leis internacionais.
O segundo capítulo trata dos esforços empreendidos pelo Partido Comunista chinês para reunificar a ilha ao continente. Destaca que isso teria se iniciado mesmo antes da conquista do poder, uma vez que desde sua fundação o partido teria definido o objetivo de livrar a ilha do domínio colonial imposto pelos japoneses desde a vitória na primeira guerra sino-japonesa, no final do século 19.
O documento destaca que o partido criou, em 1978, o conceito de “Um país, dois sistemas”, aplicando-o primeiro em Hong Kong e Macau, que no final do século 20 retornaram à soberania chinesa. A adoção desse conceito teria possibilitado o início de um novo capítulo nas relações entre os dois lados do Estreito de Taiwan, contribuindo para o aumento do comércio entre as duas partes, que passou de 46 milhões de dólares, em 1978, para 328,34 bilhões, em 2021. Há 21 anos que a China é o maior destino das exportações taiwanesas.
O terceiro capítulo afirma em seu título que o processo de reunificação da China é um processo que não pode ser interrompido. Neste ponto, o documento se volta para o chamado “século da humilhação”, período que vai de meados do século 19 até a vitória comunista na guerra civil, em 1949. Essa foi a época em que os impérios ocidentais, além de Rússia e Japão impuseram uma série de humilhações aos chineses. É a época das duas guerras do ópio e da exploração colonial de diversas áreas do território chinês.
Ao relembrar esse período especialmente sensível aos chineses, o documento afirma que somente realizando uma completa reunificação, o povo chinês, em ambos os lados do Estreito, poderá deixar no passado a sombra da guerra civil e criar e desfrutar de uma paz duradoura. A reunificação seria a única maneira de evitar o risco de Taiwan ser invadida e ocupada novamente por estrangeiros e de frustrar as tentativas de forças externas para conter a China.
O partido atualmente no poder em Taiwan, o DPP (Partido Progressista Democrático) é acusado de colocar em perigo a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan, uma vez que estaria promovendo políticas independentistas, em “conluio” com forças externas
Essas forças externas (os EUA são citados diretamente) estariam interferindo e seriam um obstáculo à reunificação da China. A questão taiwanesa é colocada como uma questão interna da China e a interferência dos EUA teria a intenção encoberta de conter a China, minando seu desenvolvimento e progresso.
O quarto capítulo fala sobre a “reunificação nacional em uma nova era”. Nele, os chineses propagandeiam como se daria a reunificação. Afirmam que a solução pacífica é a “primeira opção” do Partido Comunista Chinês, sendo a que melhor atende aos interesses em ambos os lados do Estreito. Aos taiwaneses seria concedido muita autonomia, baseada no conceito de “um país dois sistemas”.
Os chineses afirmam, ainda, que o separatismo e a interferência estrangeira levarão a ilha ao abismo e ao desastre. Neste ponto, o documento, diferentemente das versões de 1993 e 2000, afirma que a China, apesar de preferir a solução pacífica, não abrirá mão de utilizar a força se for necessário. E faz um alerta aos EUA, dizendo que algumas forças naquele país estão incitando grupos taiwaneses à agitação e usando Taiwan como um peão contra a China. Isso comprometeria a paz e estabilidade no Estreito de Taiwan, obstruindo os esforços do governo chinês para a reunificação pacífica, e minando o desenvolvimento saudável e estável das relações sino-americanas. Afirmam que se não for controlada, a tensão continuará a aumentar em todo o Estreito. Segundo os chineses, os EUA devem respeitar o princípio de uma só China, lidar com questões relacionadas com Taiwan de forma prudente e adequada, manter seus compromissos anteriores e parar de apoiar os separatistas de Taiwan.
No quinto e último capítulo, os chineses listam o que chamam de “brilhantes perspectivas” para a reunificação pacífica. Reafirmam que os taiwaneses terão um grande espaço para se desenvolver, que terão seus direitos e interesses protegidos e que a reunificação será benéfica para toda a região do Indo-Pacífico e fará com que a China seja ainda mais forte e próspera, aumentando sua influência internacional.
Na conclusão do livro branco os chineses sintetizam a mensagem que querem passar ao mundo através do documento: a reunificação precisa ser, e será, efetivada.
A divulgação deste documento, neste momento, é significativa também porque é uma resposta chinesa a uma crescente assertividade norte-americana na região do Indo-Pacífico. Além disso, os chineses travam uma batalha pelos corações e mentes dos taiwaneses. As ideias separatistas ganham corpo naquela sociedade. Em recentes pesquisas, o percentual de cidadãos que deseja a reunificação imediata atingiu os menores índices da série histórica[1], sendo a opção de apenas 1,3% da população.
A Guerra na Ucrânia tem um papel no retorno desse tema às manchetes internacionais. Afinal, a guerra como instrumento para conquista de territórios, que se julgava ultrapassada, especialmente dentre as grandes potências, voltou a se mostrar possível. E essa opção, se antes não era explicitada pelos chineses, agora passou a ser claramente apresentada como possível, em um documento oficial.
Meu nome é Paulo Filho, eu escrevo sobre assuntos estratégicos, geopolítica e liderança. Me acompanhem no blog paulofilho.net.br e no Twitter: @PauloFilho_90.