Os limites estabelecidos pelas Convenções de Genebra para conflitos já foram flagrantemente violados – mas ainda são importantes
“Até mesmo as guerras têm regras”, disse o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na semana passada, repetindo um princípio do direito internacional que a experiência mostrou ser mais aspiracional do que operacional.
O Hamas zombou das regras mais sagradas quando intencionalmente atacou civis no início deste mês em uma operação que matou mais de 1.000 israelenses e fez cerca de 200 pessoas reféns.
Mas as atrocidades do Hamas não podem justificar uma retaliação ilimitada. À medida que Israel intensifica sua resposta, desde bombardeios aéreos em Gaza a uma possível invasão terrestre do território controlado pelo Hamas, até mesmo os aliados mais próximos do país estão alertando para o potencial de uma catástrofe humanitária.
“Israel tem o direito de se defender, e não apenas se defender, mas também garantir que, na medida do possível, isso não aconteça novamente”, disse o Secretário de Estado Antony Blinken, no domingo (15).
“Mas a forma como Israel faz isso também é muito importante, incluindo tomar todas as precauções para não prejudicar civis e garantir que aqueles que precisam de assistência possam obtê-la.”
Quais são as leis da guerra e de onde elas vêm?
Embora os costumes de guerra tenham evoluído ao longo de séculos, foi somente com o início do combate mecanizado no século XIX que as regras começaram a ser codificadas em tratados internacionais.
O documento central ainda é o das Convenções de Genebra de 1949, que incluem regras para o tratamento de não combatentes e prisioneiros. Tanto Israel quanto a Autoridade Palestina, que não controla Gaza, mas no papel inclui o território, ratificaram as convenções.
Outros tratados estabelecem obrigações adicionais, como a proibição de tortura, e cada exército nacional geralmente tem um código de leis que governa as forças armadas e um sistema de tribunal militar para responsabilizar os membros do serviço.
É ilegal matar civis em operações militares?
Não, mas é ilegal alvejá-los. Além disso, “atos ou ameaças de violência cujo objetivo principal seja espalhar terror entre a população civil são proibidos”, diz o Protocolo I de 1977 das Convenções de Genebra.
Mas as leis da guerra reconhecem que as baixas civis quase sempre resultam de conflitos armados e estabelecem princípios, como distinção e proporcionalidade, para atenuá-los.
Os exércitos devem “distinguir entre a população civil e os combatentes e entre os objetos civis e os objetivos militares e, consequentemente, dirigir suas operações apenas contra objetivos militares”, diz também o Protocolo I.
Entretanto, uma instalação civil, incluindo uma casa de culto ou até mesmo um hospital, pode perder sua proteção se for usada para fins militares.
A Autoridade Palestina ratificou o Protocolo I. Assim como os Estados Unidos, Israel não o fez, mas reconhece os princípios de distinção e proporcionalidade como direito internacional costumeiro.
Embora os princípios sejam claros, sua aplicação muitas vezes não é. Em uma zona de guerra, é difícil distinguir com certeza instalações puramente civis daquelas suspeitas de uso militar pelo inimigo, e ainda mais difícil calcular qual grau de baixas civis é proporcional ao objetivo militar buscado.
As táticas do Hamas tornam tais julgamentos ainda mais difíceis, pois a organização terrorista toma medidas para confundir as fronteiras ao embutir seus combatentes e instalações entre os civis.
“Mesmo que o Hamas não esteja usando ativamente os civis como escudos, sua mera proximidade complica as operações porque os israelenses não são dispensados de suas obrigações legais”, disse Michael Schmitt, um estudioso do direito de guerra na Academia Militar dos EUA em West Point.
Schmitt, um ex-advogado-juiz da Força Aérea dos EUA, disse que Israel também tem advogados uniformizados aconselhando comandantes sobre seleção de alvos e outras decisões operacionais para cumprimento dos requisitos legais.
Ele citou várias ações de Israel, como avisar os civis em Gaza para se deslocarem para o sul antes das operações militares, como medidas apropriadas para reduzir as baixas.
Como as leis de guerra são aplicadas?
Cada nação é responsável por fazer cumprir as leis de guerra para suas próprias forças e, normalmente, para combatentes inimigos capturados.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido em 2002, foi criado para intervir quando o sistema judicial de um estado-membro não pode ou não irá responsabilizar indivíduos suspeitos de graves ofensas. Israel, assim como os Estados Unidos, não pertence ao TPI.
A Autoridade Palestina pertence e, em 2021, a então procuradora do tribunal disse que seu escritório estava abrindo uma investigação sobre possíveis crimes de guerra na Cisjordânia e Gaza. O Tribunal disse pouco desde então sobre a investigação, e os recursos do órgão já estão esgotados com investigações na Ucrânia e em outros locais.
Uma comissão de inquérito da ONU disse na semana passada que havia começado a coletar evidências de crimes de guerra por todos os lados do conflito, mas não tem poderes de execução e não pode tomar medidas substanciais sem o consentimento do Conselho de Segurança.
Alguns países afirmaram o direito de processar indivíduos por crimes de guerra cometidos em qualquer lugar; eles poderiam iniciar processos em seus próprios tribunais.

Quais são as medidas que Israel adota para cumprir as leis da guerra?
O Exército de Defesa de Israel cita tanto “valores morais universais” quanto “a tradição do Povo Judeu ao longo de sua história” para afirmar que seus soldados “têm a obrigação de preservar a dignidade humana” e reconhecem que “todos os seres humanos têm um valor inerente, independentemente de raça, fé, nacionalidade, gênero ou status”.
O exército afirma levar a sério as alegações de má conduta e investigá-las.
No entanto, grupos de direitos humanos e especialistas da ONU frequentemente criticam a conduta do exército israelense. Na segunda-feira (16), um painel da ONU alegou que Israel usou força excessiva para reprimir manifestações na Cisjordânia em 2021.
Aplicar princípios legais no campo de batalha não é uma tarefa simples, disse Amos Guiora, professor de direito da Universidade de Utah, que atuou como conselheiro jurídico do exército israelense na Faixa de Gaza durante a década de 1990, antes de Israel se retirar do território em 2005.
Um problema-chave, segundo Guiora, é se Israel classifica o conflito como uma operação de contraterrorismo ou uma guerra. Operações de contraterrorismo, incluindo assassinatos direcionados, visam indivíduos e células específicas, “e você faz todo o esforço para minimizar danos colaterais”, disse ele.
As guerras são menos restritas. Se acredita que combatentes inimigos estejam em um prédio, ele pode ser destruído, disse ele. “E se pessoas inocentes estiverem nesse prédio, suponho que seja ‘Deus esteja com eles'”, disse ele. “Não me lembro de comandantes de tanques serem julgados em tempos de guerra por derrubar uma casa.”
Guiora disse não ter certeza se a declaração de guerra do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu contra o Hamas era apenas retórica ou pretendia ter consequências legais para a conduta do exército. Ele acrescentou: “O que me preocupa é: estamos dando clareza às pessoas que estão segurando a arma?”
(Com The Wall Street Journal; Título original: How the Israel-Hamas War testes International Law)