Todas as varejistas são iguais, mas algumas são mais iguais que outras.
A paráfrase da clássica citação de Orwell traduz a realidade de que o varejo em si tem características intrínsecas, as quais permitem a categorização de companhias neste mesmo setor, mas que todavia carrega subdivisões mais profundas entre si do que supõe a vã filosofia.
Pode ser tentador para o investidor brasileiro generalizar as varejistas como farinha do mesmo saco. Principalmente a julgar pelas performances decepcionantes de ativos de projeção midiática – como Magazine Luiza [MGLU3] e Petz [PETZ3] – durante o aperto monetário do Banco Central dos últimos três anos.
Mas, com o arrefecimento da inflação, o subsequente início do afrouxamento monetário no Brasil e o incipiente renovo do interesse nas ações da B3, distinguir quem se beneficia mais ou menos – ou simplesmente primeiro – dos juros mais baixos pode ampliar horizontes.
De acordo com as três casas de análise ouvidas pelo TradeNews, o joio e o trigo do mercado acionário interno de hoje já são perceptíveis.
O que pensar ao investir
“Entendemos que o ciclo de queda da taxa de juros, assim como uma estabilização do endividamento das famílias e um ambiente de crédito menos restritivo deve contribuir para uma recuperação gradual no setor”, comentou Niels Tahara, da Eleven Financial.
Quem se aproxima das varejistas hoje precisa ter em mente que o momento é favorável para investimento, diz Leonardo Piovesan, analista de fundamentos da Quantzed. Agora em fevereiro, o mercado passou por uma correção da forte alta do final de 2023. Essa correção, vista principalmente nas small caps, “abre oportunidades de compra para algumas ações que mais sofreram nesse período”.
A estratégia é simples: comprar ativos nivelados por baixo em um cenário de potencial recuperação do setor ao longo do ano – mais especificamente, do segundo semestre de 2024 em diante. A queda da inflação e dos juros, assim como uma volta do crédito e do consumo “deixam o cenário atrativo para alocar em varejo”, pondera o especialista
Melhores produtos da prateleira
Os três analistas consultados destacaram o subsetor de varejo de moda como o mais adiantado para tal cenário-base de recuperação.
Piovesan tem Guararapes [GUAR3] como ativo favorito. Além da possível recuperação do segmento vestuário, a Quantzed destaca o financeiro da companhia na tese de investimento.
Além dos juros altos, o aumento da inadimplência dos consumidores machucou o caixa da Guararapes, mas “esse ano a gente deve ver o inverso nas duas pontas”, prossegue o especialista. O próprio corte da Selic ajuda no custo de funding da companhia – isto é, o crédito concedido aos consumidores.
A Guararapes também poderá voltar a ter concessão de crédito mais forte por conta de uma queda da inadimplência, “dado que essas safras antigas, com uma inadimplência maior vão sendo consumidas”.
Sérgio Neto, da Capitalizo, concorda quanto ao potencial das empresas de vestuário, recomendando Vivara [VIVA3], Arezzo [ARZZ3], Vulcabras [VULC3] e o Grupo SBF [SBFG3]. Todas donas de marcas fortes e com adesão de públicos de renda mais alta.
A dona da Centauro, por exemplo, tem a Fisia, detentora dos direitos da Nike no Brasil, em seu escopo. “A gente acredita que esse tipo de varejo consiga ter resultados ainda positivos.”
Todavia, o analista não é tão otimista sobre o desempenho das marcas voltadas para o público de renda inferior este ano. Ele vê as marcas premium “surfando uma onda melhor” que companhias como Lojas Renner [LREN3], C&A [CEAB3] e a própria Guararapes.
Niels Tahara igualmente destaca VIVA3, ARZZ3 e VULC3 como melhores opções de investimento no varejo de moda. A Eleven também vê o subsetor de alimentos como oportunidade, com destaque para o Grupo Mateus [GMAT3].
Após um ano em que a desinflação dos alimentos prejudicou as margens do setor, a expectativa é de efeito inverso em 2024, com o recrudescimento da inflação na categoria contribuindo para o crescimento de vendas em mesmas lojas (SSS). Em conjunto com os planos de expansão das empresas e as menores despesas, a inflação deve impulsionar o crescimento de lucros, explicou Tahara.
Apesar de haver perspectiva de recuperação do varejo este ano, ele também considera a gradualidade do processo. Por isso, “ainda priorizamos empresas de alta qualidade, com poder de marca e diferenciação, assim como exposição a faixas de renda maiores, que são menos sensíveis ao ambiente macroeconômico”.
Não é promoção, é cilada
O pior setor
Há consenso a respeito da pior parte do varejo brasileiro hoje: eletrodomésticos. Os três especialistas ressaltam que o cenário para o comércio de produtos de linha branca segue desafiador mesmo com os juros em baixa.
O volume de vendas dessas empresas pode retomar crescimento em 2024, pontua Piovesan. Entretanto, se isso acontecer, seria um movimento ainda tímido.
A Selic está caindo, mas segue em patamar elevado, portanto não deve ser o suficiente para elevar o consumo no subsetor como um todo, acrescenta Sérgio Neto. Principalmente porque o nível de endividamento do brasileiro segue alto.
A concorrência com empresas estrangeiras é uma pedra no sapato adicional. Com o Mercado Livre [MELI34] e Amazon [AMZO34] ganhando cada vez mais participação no mercado brasileiro, as companhias de e-commerce nacionais ficam ainda mais prejudicadas.
A pior empresa
Casas Bahia [BHIA3] – que é tanto do e-commerce quanto da linha branca – é a companhia em pior cenário. Afinal, além do contexto geral para o setor, a varejista tem também que lidar com seus próprios problemas internos, os quais incluem um endividamento bilionário.
O Grupo chegou a arrecadar R$ 622 milhões em uma oferta subsequente no ano passado. O montante, além de ter sido bem menor que os R$ 2 bilhões pretendidos, tampouco deve servir para reestruturar a empresa.
Sérgio Neto define o follow-on realizado como “uma questão mais de sobrevivência”, cujo efeito atende apenas à liquidez de curto prazo. A oferta serviu apenas para a Casas Bahia manter suas operações. A empresa “vem sempre fazendo esses pedidos de aumento de capital e constantemente está necessitando de mais capital, já é uma prova de que esse dinheiro não está sendo bem utilizado”.
Apesar do plano de reestruturação apresentado pelos administradores da empresa, os resultados não têm sido satisfatórios, conclui.
O que vem por aí
Entre o aumento de capital e a melhora operacional
O Grupo Pão de Açúcar [PCAR3] virou o ano prometendo follow-on. A oferta ainda não foi confirmada, mas pode ter contribuição efetiva para colocar a companhia nos eixos caso aconteça.
Isso porque o aumento de capital via Bolsa não é a única medida no plano da empresa. O GPA já vem executando bem seu plano de reestruturação, com ganhos de margens e otimização de despesas, permitindo que a companhia volte a crescer, descreve Tahara. Assim, um follow-on só teria a acrescentar.
Piovesan concorda, e também cita os desinvestimentos da companhia, como a venda do Éxito, como contribuições positivas para a reestruturação do GPA. “Isso tudo representa uma entrada de caixa relevante, que já resolve em parte essa possível necessidade de aumento de capital.”
Em termos comparativos, ele vê a empresa em uma posição financeira “bem mais tranquila que a das Casas Bahia”.
O caminho da combinação de negócios
Reestruturação é a palavra, seja com aumento de capital ou fusão. O mercado repercutiu recentemente o anúncio da fusão entre Arezzo e Grupo Soma, desta vez de forma enfaticamente positiva. As oportunidades de sinergia entre as operações de ambas são o principal motivo de otimismo.
Niels Tahara, apesar de otimista com as teses de investimento das duas empresas, mantém cautela, “uma vez que a fusão também traz riscos relevantes de execução”.
Apesar da boa recepção do anúncio, a fusão está longe de evidenciar alguma melhora no ambiente para o varejo. “Pelo contrário”, diz Leonardo Piovesan, “uma fusão sinaliza um cenário mais difícil para o setor”. O momento mais difícil faz a necessidade das empresas buscarem maior eficiência operacional.
Calma, lá vem o Banco Central
Há ânimo suficiente com os cortes da Selic que vêm pela frente para permitir expectativas positivas para o setor de modo geral, mesmo que moderadas. O prospecto é de alívio tanto para os consumidores quanto para o operacional das empresas.
Do ponto de vista dos consumidores, taxas de juros mais baixas podem levar a condições mais favoráveis de crédito, aumentando o poder de compra, descreve o analista da Eleven. Já para os investidores, a redução reduz o custo da dívida das companhias, portanto pode trazer um aumento relevante de lucros nos balanços ante uma base mais fraca em 2023.
O abrandamento das condições de mercado logicamente tende a traduzir uma realidade mais favorável para os acionistas. Contudo, ainda tem água no chope.
“Logicamente a gente vê como positiva essa redução da Selic”, frisa Sérgio Neto, “mas, de certa forma, vemos um 2024 desafiador para o varejo como todo”. A projeção para o final do ano, justifica, é de uma taxa básica de juros ainda em patamar alto.